Seguidores

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

CARNE VIVA (II)













CARNE VIVA (II)
Autor: João Maria Ludugero

E Maria continua no rabo da fila
Na expectativa de melhorar de vida
Se espicha como pode, se contorse
Na dança da lagartixa, apanha  
Sem direito a ensaio, que nada
Ela faz das tripas coração.
Ossos do ofício, até vende rifa
Onde o sorteio, o alvo do prêmio
É o seu corpo presente, de fato,
Triste ironia, vende as carnes
Para ter sustento e, na barganha, 
Tenta ganhar o pão.

Maria da raia, não há como evadir-se.
Gira sua sina enquanto o mundo roda
Ela abre o leque pra se abanar, sem remédio, 
Ao transpirar e suar frio no açougue
Ao cair na lábia da freguesia, ao dançar
Para satisfazer estranhos instintos
Na saia do seu destino
Que acende a chama,
Enquanto ela se inflama
Sob a luz vermelha do calçadão.

A vida crua lhe tira o couro
Sem anestesia, sem fazer uso
De navalha alguma, do corte
Maria já nem sente o medo atroz,
Acostumou-se aos malabarismos
Sua vida é dura, não é feita só de batons,
Colares e pulseiras coloridas
Não é moleza não a poda.
Certa feita, distraída no passo,
Numa briga de rua, afoita,
Numa disputa por espaço,
Foi pego desprevenida
E perdeu pedaço da orelha.

Maria tem receio de que um dia
A moça venha lhe peitar, de súbito,
E, numa cilada, num golpe ou vacilo
Ela possa ser nocauteada, em cheio,
Perder os dentes, ficar banguela,
E nesses moldes, catraca desdentada,
Quem vai querer deitar, me diga,
Com essa pobre dona deformada,
Se a vida já lhe arranca os olhos da cara?
Imagine se se tornar inválida para o batente
Ou lhe aconteça algo pior nesse mundo cão:
Maria das dores ou Maria das graças
Amanheça atirada num canteiro nua
Desfigurada, com a boca cheia de formiga.

Espelho, espelho meu, seria sonho meu
Pensar que a vida real poderia transformar  
O cruel e ambicioso espelho da madrasta,
Obrigando a pobre Maria coitada sem senha 
A usar o elevador de serviço em nome do social,
Ela que tanto já sua ao escalar os degraus impostos 
Ao pagar as promessas com Nossa Sra. da Penha?

Um comentário:

  1. Nossa João, sua poesia desafia os sentidos. Tras angustia ao olhar a realidade, nua e crua, bem assim como a descreves!

    Meu peito bate dolorido!!!

    Um dia belo a ti..

    ResponderExcluir