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sábado, 4 de setembro de 2010

VÁRZEA, SEU ANTONIO VENTINHA E OS PORCOS




















Autor: João Maria Ludugero

Era comum ao chegar a sexta-feira, nos fins de semana, em vista da proximidade da feirinha-livre aos domigos, ver Seu Antonio Ventinha atravessar o rio Joca com um apanhado de porcos enlaçados um por um com uma enorme corda de sisal, a tanger os suínos, que quase formavam uma vara. E, quase sempre, Seu Zé Baixinho o acompanhava na mesma lida.

A matança dos porcos já se tornara tradição, era de costume, uma vez que esses animais caíram no paladar da gente varzeana, nas diversas iguarias da família, o que se compreende na medida em que a carne de porco e a batata-doce eram a base essencial da nossa alimentação e a auto-suficiência permitia viver sem excessivos gastos, posto que cabiam de bom tamanho nas despesas e no que o bolso permitia, diante das condições financeiras da maioria da população, para evitar que a miséria pudesse ressonar à porta daquela gente boa e trabalhadeira.

Era de costume se cevar porcos até mesmo nos quintais. Estes eram criados e alimentados com refeições à base de mandioca, macaxeira, jerimum, batata, milho, legumes e o farelo, além das sobras recolhidas nas moradias de famílias, padarias e nas queijarias, lugares onde dona Fátima Belo recolhia aos baldes essas lavagens, a fim de cochinar e engordar seus porcos, que criavam formoso toucinho.

A matança tinha lugar em Várzea, ali na rua da pedra, no alpendre do quintal da casa de Seu Antonio Ventinha. Essa atividade acontecia com o cair da manhã, no alvorecer, quando a cidade ainda dormia e a temperatura amena permitia um trabalho menos suado, ainda sob o sereno da madrugada em que o orvalho era mais do gênero de molha tolos, ao nascer do sol que apontava tímido por cima dos cocurutos.

E, ao se aproximar, a hora da matança, eu acordava bem cedo, a pretexto de ver de perto aquele ritual que se tornara importante ao desempenhar, digamos, assim, uma função social relevante para a comunidade varzeana, uma vez que aquele produto se tornara mais acessível às mesas de uma cozinha fortemente estruturada em rica tradição culinária, que quase tudo aproveitava do referido bicho.  

Seu Antonio Ventinha, um perito de reconhecida fama na arte de bem matar, sangrar e destrinçar o porco, conduzia o bicho para a operação, e com um golpe certeiro e profundo em sua cabeça derrubava-o, levando-o a nocaute,  e no pescoço consumava-se a morte pelo sangramento, que era amparado nos alguidares com a precisa ajuda de dona Rosa.

Em seguida era chamuscado o porco, seguindo-se a lavagem para o que se usava afiada faca para a raspagem, água e por vezes sabão. Concluída esta, começava a abertura, sendo pendurado com a cabeça para baixo, para se tirar o couracho, as mantas de toucinho, o subventre, o fígado, os rins, o coração, a buchada, as tripas, tudo no tempo de uma baforada no cachimbo de dona Rosa, ávida para preparar o que a tradição impunha: uma refeição de dar água na boca do varzeano: o sarapatel, picadinho constituído pelo sangue, fígado, pulmões, coração etc, capaz de saciar os paladares mais exigentes,  sem comentar dos tachos no fogão-de-lenha, repletos de torresmos crocantes de atiçar o apetite e a alma da gente.

Não é demais cingir que a matança dos porcos faz parte da nossa riqueza patrimonial e cultural, coisa que herdamos dos antepassados, através dos anos andados na seara varzeana. Recuo no tempo, procurando abordar esse assunto da forma mais clara e genuína, mais propriamente à infância bem vivida na minha Várzea. Guardo com saudade as lembranças daquele tempo em que fui feliz porque observei de perto essas emoções!

Por derradeiro, eu sei bem o que perco sempre que o tempo não me deixa visitá-lo e o tanto que ganho de cada vez que, com o tempo merecido, saboreio as palavras que escrevo, porque sei o que faço, o que sinto de verdade. Podem até surgir críticas, tal como aparecer alguém a dizer: - Virgem, Nossa, o poeta acha bonito a matança de porcos? Coitadinhos dos porquinhos, tão bonitinhos!... Mas isso me importa pouco, por que dessas pessoas "sensíveis" ando farto até à medula, pois na hora da garfada elas não deixam sobrar nem os ossos. E ainda palitam os dentes!

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