Hoje, eu acordei e fiquei a pensar: algumas pessoas acham que a vida somente tem sentido para quem deixa uma herança ou um legado. Um registro qualquer sobre a terra. Bobagem!
Não há diferença entre deixar para trás uma escultura gigantesca, que paire sobre toda uma cidade e um simples livro - "Memórias de um menino varzeano"-, desde que ambos sejam capazes de um dia, no futuro, comover pessoas. Ou uma pessoa que seja. Nisso, com toda modéstia, me igualo a um artista. Sou um escritor. A meu modo deixo a minha obra de arte.
E por falar em memórias, não poderia deixar de aqui trazer, mais por uma questão de justa homenagem e reconhecimento, o nome de Plácido Tomaz de Lima, Seu Nenê Tomaz, que, justiça feita, figura entre as personalidades varzeanas, sem que eu esteja aqui rasgando seda ou puxando a sardinha para a minha lata. Não é isso. Mas o Pai de Terezinha Tomaz de Lima, sob a minha ótica, foi um grande cidadão da nossa terra.
Plácido Tomaz de Lima, homem detentor de uma simplicidade inesgotável e um grande e dedicado pai de família, justo, sensato e zeloso. E por que não dizer, preocupado com o bem-estar da cidade, da sua grande prole, sua descendência, o que ele sempre defendia, diga-se de pronto, com unhas e dentes, com denodo e honradez.
Só sei de uma coisa: Já não se fazem mais pessoas com a estirpe de Nenê Tomaz, digo, sem receio do acerto, homem de dignidade e destemor ímpar, que arregaçava as mangas e não tinha medo das agruras da vida. Nunca teve. Que exemplo, não é mesmo dona Tilde?
Eu me lembro muito bem, portanto, tenho propriedade em falar dele, pois cresci ouvindo suas tiradas inteligentes, a própria voz da experiência, um homem que acreditava na força do trabalho, que não media esforços para manter sua família unida e em condições dignas de bem viver, seguindo suas justificáveis cautelas e exigências baseadas no bom-senso. Ele sabia porque as coisas tinham que ser daquele jeito.
Ele nos ensinava, a seu modo, que a lei da vida é dura, crua, que ela nos cobra caro e suado e, se pisamos em falso e no escuro, a situação não nos deixa em condições favoráveis, vulneráveis, pois precisamos agir sempre e constantemente com responsabilidade, determinação e sensatez. Consabido que a vida nos cobra e o retorno sempre vem. Pode até demorar, mas vem. Precisamos fazer a nossa parte, com qualidade, respeito e vontade de fazer bem feito. A vida vale a pena, apesar dos pesares, do fardo. A vida vale mesmo "pitéu". Parodiando o nosso inesquecível Plácido Nenê Tomaz: "Essa menina dá um pitéu".
Tudo isso só me faz bem recordar. Ali na Padaria, a gente se reunia e não perdia tempo, a empacotar bolachas pequenas, bolachões, biscoitos doces e salgados, sequilhos, soldas, brotes, torradas e regalias, feitos de farinha de trigo. Eram balaios e mais balaios, de pão e poesia. E conversas jogadas fora. Prevalecia a amizade sincera, sem pressa, desinteressada, como se aquele ambiente saudável fosse uma extensão da casa da gente, um puxadinho.
Ali na padaria de Seu Nenê Tomaz, a gente ocupava a vida, lia, se atualizava, se informava de um tudo, desde geografia, conhecimentos gerais até a vida do povo, a vida alheia, sim, por que não? Dali saía de um tudo um pouco, estórias, pães quentinhos, balaios de roscas, conversas fiadas, biscoitos finos, contos, notícias fresquinhas, mídia, televisão, viajava o mundo todo, sem sair de Várzea. Pode uma coisa dessas? Até mesmo as lições da escola a gente fazia ali, as composições, os teoremas, a aritmética da vida.
Ali o forno de lenha, a fornalha continuava acesa, quentinha, aonde o 'Zé Pifani' preparava a massa do pão e enrolava os biscoitos, as bolachas, o trigo, a farinha. A gente não tinha mesmo pressa nenhuma. A esperança ficava mais acesa no restante do tempo, a gente lutava para que ela não se apagasse. E deu no que deu: a chama continua acesa, a gente nunca vai morrer de frio. Disso eu tenho certeza!
Ter conhecido e convivido com pessoas como Plácido Tomaz de Lima, confesso orgulhoso, com toda pureza d'alma, para mim, foi uma bênção, eis que, por graça e ação de pessoas de tamanha estirpe e respeito, vejo-me ora ostentando no peito honraria de alto quilate. Sou eu um escritor varzeano. Tenho memórias a escrever, tenho história para contar, de verdade, de gente-gente. História da minha Várzea querida.
Seu Nenê Tomaz foi um ser humano inigualável, de um espírito para cima, não tinha tempo ruim para ele, que fazia de tudo com a mesma simplicidade com que também organizava sua padaria, seus pães, sobre fornalha de pau de lenha, ali na subida da travessa Brasiliano Coelho.
Lembro-me que o seu passo arrastado e sua cara de semblante sisudo, sério, quando adentrava nos corredores da padaria, era a senha para a debandada. A gente corria ou ficava de bico calado. Por ele, a gente sentia o maior respeito e só falava de coisas e assuntos calcados no bom alvitre e no comportamento exemplar. Ele realmente era um homem cauteloso, que agia com prudência e seriedade, em se tratando das coisas da sua casa, da sua panificadora e da sua Lagoa Comprida. Isso é tudo verdade. Assim era a sua vida.
Hoje eu sou escritor. Mais um homem que aprendeu a lidar com palavras. Já escrevi e tive a ventura de descrever momentos singulares da minha vida, tecendo minhas memórias no papel. Continuo escrevendo e retratando pessoas e eventos que marcarão a minha vida para sempre. Já escrevi vários textos e artigos que pretendo publicar em breve. Sou um homem da palavra. Palavra. Palavras. Lido com elas. Trabalho muito com elas. Uso-as. Lapido-as, Aproveito-as. Cruel, descarto-as quantas vezes nas revisões. E as palavras salvas na 'bateia' viram frases, textos e muitas delas estarão estampadas no meu livro "Memórias de um menino varzeano".
Apesar de ser um homem que lida com palavras, me emociono ao tratar de pessoas que para mim têm um alto significado. Confesso, é nessas horas que a emoção me cala. Há momentos em que fala com mais intensidade o silêncio. Falo por mim. Eu, João Maria Ludugero da Silva, homem que lida com as palavras, não as teria, nesse momento, para manifestar os mais exaltados agradecimentos que me fervem no coração. Agradecimento a Deus por ter conhecido pessoas do calibre do povo varzeano.
Aproveito o ensejo para agradecer a todos os varzeanos que, mediante as memórias sobre a história da nossa cidade e nossa gente, acabo de realizar um grande sonho: escrever minha obra, o meu livro.
Permitam-me dizer-lhes: Vocês me deram o mérito de entrar na vida do povo varzeano para me tornar escritor, de verdade, para entrar no magnífico hall dos homens da letras e das palavras. Obrigado, meu grande povo varzeano. Muito obrigado!
E dentre as banalidades cotidianas, a gente chegava cedo para assuntar da vida: Éramos eu, Chiquinho, Terezinha, Piedade, Dorinha, entre tantos outros que não vou mais citar nomes para não correr o risco de esquecer de alguém...
E o ato de comprar pão virava rotina. A gente dava as cartas no jogo da vida, reinventando o dia-a-dia, unindo no mesmo espaço alimento para o corpo e para alma. A gente idealizava projetos de vida, pão e poesia.
A gente empacotava biscoitos, embalava nos saquinhos de pão nossos sonhos, que eram diversos, nós estreantes de um mundo não muito distante da gente, o mundo do sonho, do pão e da poesia. Recordo-me que a Dorinha Tomaz incentivou-me a ler "Menino de Engenho" e outras tantas obras. Ela trazia a literatura para o cotidiano, para a leitura à mesa, ao balcão da padaria, para me aproximar do mundo não me distanciando do hábito de ler.
Os livros me chegavam às mãos com a simplicidade do pão, unido ao corriqueiro. Ali a gente fazia dos deveres de casa, as lições de vida. Como eu não tinha dinheiro para comprar os livros indicados na escola, meus amigos se reuniam e adquiriam os livros para mim. Em troca, eu devorava os livros, para 'auxiliar' meus amigos na hora "h" das avaliações, provas e outras aferições.
A gente ocupava o tempo embalando biscoitos e, de passatempo, senta-se nos bancos da padaria, nas cadeiras, nos tamboretes, na mesa forrada por toalha de mesa salpicada de farelos de pão. Ali a poesia ampliava seu alcance envolta pela ludicidade e pelo improvável: encontrar poesia na repetição automática do embalar de biscoitos, bolachas, sonhos e pães.
Ocupando a vida com trabalho, a empacotar pão e a embalar sonhos, a gente se esbaldava em fazer valer o nosso cotidiano. Hoje a gente se espalhou, tomou diferentes rumos. Mas nós estamos a fazer a nossa parte, como parte da vida que é, para todos, adquirida com muito suor, mas não cruzamos os braços às adversidades. Estamos na luta, estamos na lida. Agora circulamos pela vida desde mãos finas a calejadas pelo trabalho duro, transformando o banal em momento singular, pouco importa, o que nos orienta é uma força divina, é essa Força Maior que vem do alto, é o que nos basta.
Um dia sei que não estaremos mais aqui. Mas isso já é uma outra história que será contada adiante, quiçá, por nossos filhos e gerações futuras.
De resto, por ora me é gratificante dizer: o que seria da vida sem pão e poesia, o que seria do sonho?
Autor: João Ludugero
Bem extenso o seu texto. Mas disse tudo com sua linguagem que fala direto ao coração. Pureza e uma conduta de simplicidade peculiar e, diga-se de passagem, rara nos dias atuais, onde prepondera a gíria e uma fala midiática de pessoas apressadas, de mensagens abreviadas, corriqueiras e pobres no português. Aqui você pincelou instantes vividos como aprendizado em sua trajetória de vida, da velha infância aos dias de hoje. Parabéns! Adorei o texto e seu conteúdo. Vale a pena ler e reler, sentir. Isso sim é que é viver de verdade, nos mínimos dealhes encontramos sentimento, até nofarelo do pão sobre a mesa. Que poético e aconchegante escrito.
ResponderExcluirAbraços, adoramos o que escreve. Queremos mais.
Jayme Augusto e Lorenna Louvatti de Castro-Brasília/DF.
QUE BELEZA!!!
ResponderExcluirLAVEI A ALMA AO LER SEU BLOG. QUE TEXTO ENCANTADOR.
VALE A PENA LER COISAS ASSIM QUE MEXEM COM O INTERIOR DA GENTE, QUE NOS TRANSPORTA LONGE A UM TEMPO BOM.
ABRAÇOS,
WANDICK ADAUTO DE SOUZA - BSB-DF.
ADOREI ESSE BLOG SUPIMPA E ACONSELHO QUE OUTROS O VEJAM E SABOREIEM SUA POESIA TÃO BELA!
ResponderExcluirMOÇO QUEM TE DEU ESSE DOM DE ESCREVER COISAS SIMPLES E TÃO PROFUNDAS? VC PISA FUNDO NA ALMA DA GENTE. OLHA, ESTOU MESMO BOQUIABERTA, DE VERDADE. QUE POESIA EM SUAS PALAVRAS DOCES, COM CHEIRO, COM AROMA DE PÃO QUENTINHO E POESIA.
ATT,
GRAÇA ARAÚJO - TAGUATINGA NORTE-DF