Hoje está tranquilo. Na janela, o Vapor,
leva um pouco dos ares da Várzea dos Caicos.
Um jacundá salta dentro do samburá da minha mão.
O tempo solta folhas na beira do rio Joca.A correnteza leva
a marca do vento e o meu peito que bate devagar,
sob a minha visão alaranjada pelas flores do mulungu,
bem como pelos adocicados frutos do verdejante juazeiro,
repleto de anuns e pintassilgos que ainda me ninam em cantiga
sob o calor da tarde amena do agreste de Ângelo Bezerra.
Caminho com as mãos cheias de ar. Como duas cenas da infância.
Um bem-te-vizinho brinca. Que temperança!
Como um dia depois de outro dia,
olhando um singelo quadro sem fundo.
É tão triste essa brincadeira de pôr cinzas na vargem.
Minha mão no rio Joca é landuá pelo rio de Nozinho.
Meu retrato é sinal de saudade de dona Alba Albanita Guimarães,
Minhas recordações me elevam aos alguidares de paçoca com carne-seca e cebola-roxa,
Além das cocadas, raivas, carrapichos, soldas, sonhos em peitos-de-moça e línguas-de-sogra feitos por dona Carmozina...
Ó que saudade dos bolos-pretos, puxa-puxas, quebra-queixos, brotes, cuscuz de milho zarolho feitos por dona Zidora Paulino,
Sem esquecer das bolachas regalias, dos bolachões, biscoitos e roscas feitos por Zé Epifânio lá na padaria de Seu Plácido 'Nenê Tomaz' de Lima, o homem do pitéu das famosas e faceiras meninas varzeanas.
Mas minha imagem segue devagar, sem se dissipar feito um calor que queima,
Não chove ao estio das Formas e dos Seixos ou dos Ariscos de Virgílio Pedro.
E, assim, fico perdido ou achando-me no agreste dos Gravatás e do açude do Calango.
Um marmeleiro empalidece e desmaia bem ao meu lado.
Olho meus pés. As pontas dos dedos cheias de calos.
É um sonho? Meus olhos têm vertentes nas fontes dos lajedos.
O rio Joca insiste comigo, no reflexo de uma nuvem esfiapada.
Um sanhaço só esvoaça afoito e volta a degustar o formoso mamão maduro.
Uma nuvem ronca pra mim, atrevida tardando em trazer a chuva pra fazer a enchente do rio Joca e o mais animado alvoroço em correr para ir nadar nas boias de câmaras-de-ar de pneus de veículos que Antônio Picica de Xinene de Cícero Paulino enchia lá na oficina de Tonheiro.
Mas que sono gostoso a observar o céu azul de São Pedro Apóstolo. Azul de saudade eterna, desde o Itapacurá de Tio João Pequeno ou do carrego de pitombas, jacas, juás, jatobás, seriguelas, jaboticabas, mangas, cajás, cajus e castanhas lá da seara de dona Julieta Alves, avó de Edileuza Alves da Cunha...
Voar assim nas letras é vontade de chegar pertinho da estrela Dalva, só pra ganhar um maternal abraço iluminado da minha estrela da vida inteira, minha Mãe, dona Maria Dalva de Seu Odilon, filho da benzedeira Dalila Maria da Conceição.
À direita dos meus pensamentos firmados, fica o rosto de dona Lia, mãe de dona Irene de Seu Milton. Que fez 108 anos no último dia 19 de abril, dia do índio, mesma data do meu aniversário.
Como faz bem lembrar quando ela ela preparava as árvores de Natal, as guirlandas de pés de algodão que ela me pedia para apanhar na beira do rio Joca, as quais ela encorpava de chumaços de algodão e bolinhas coloridas. E a gente ficava a espiar tanta delicadeza daquela senhora que nos ofertava mingaus de fubá, cuscuz de milho zarolho, munguzás, sequilhos, cocadas e outros brotes que só ela sabia fazer. Todo dia ela me mostrava fotografias da família, ensinando-nos, cada vez mais, a gostar de cantigas da MPB. E como fazia calor! Mas a gente se animava aos magotes para fazer a alegria acontecer nos dias da nossa Várzea de madrinha Joaninha Mulato.
Seu Odilon, meu pai aparecia contente e nos levava a tomar banho no rio Joca.
Fazia muito calor, enquanto as andorinhas e os bem-te-vizinhos ficavam de guarda, como que ficassem de prontidão na espera que a gente se encantasse ao escutar tão singelas, belas e possantes cantigas de passarinhos.
Seu Odilon descia ao agreste e me abraçava como que a me ninar dentro da tarde amena varzeana. Terminava nos elevando a quebrar tantos e quantos potes de fantasias, aliadas às estripulias de um magote de meninos levados da breca. Sempre fazia a gente ficar contente a sorrir com toda magia e esperteza na lida pelo interior da seara de Ângelo Bezerra.
Quando íamos, levávamos samburás, bornais e bisacos de rapaduras, cocadas, paçocas, sequilhos e quebra-queixos. Passávamos a tarde inteira a contemplar os mulungus em flor, a alaranjar o arrebol ao repentino lusco-fusco sob o Vapor de Zé Catolé, depois de Zuquinha, aonde a gente degustava tapiocas, beijus, pipocas e tantas regalias feitas por dona Lourdes no fogão-de-lenha.
Reviro a memória dentro de tantas histórias que marcaram a minha velha infância, enxugo as lágrimas, pois marejam meu rosto pelo vão da saudade, passo a divagar sem me perder ou arredar o pé da minha Várzea dos Caicos.
Pego meu espelho e meto a cara que não se afasta. Tenho mais de 50 anos, mas ainda continuo aquele menino João maduro Ludugero tão levado da breca. faço poesia. Estou sorrindo com a vida que me dá de presente um bonito arquivo-vivo passado a limpo
Estou sorrindo de bem com a vida. Com o coração partido de saudades. Mas sorrio assim mesmo. Tenho tantos anos e trago quantas lembranças de mim.
Há tantos anos habitei minha Várzea.
Lá existiam as bananeiras, os cajueiros, as mangueiras e o paul de canas-caianas e curimbatórias de Seu Lourival de Carvalho e lá dos Ariscos de Seu Antônio Belo, de dona Beatriz, dos Bentos e dos Marreiros. Tudo me cheira a saudades a correr dentro, além das manipueiras e do aroma das roupas lavadas espalhadas pelas cercas dos Ariscos.
Minha poesia, que retrata tudo isso, é um sopro de vida que aprendi sozinho.
Meus bons ares estão soltos e impregnados na memória, com afinco. Na pasta de hortelã ou de casca de juá depois do lanche da tarde varzeana, aonde a gente degustava coalhadas adocicadas com o mel de abelhas-europeias coletado por Seu Zé Miranda lá pelas bandas do Maracujá, dos Umbus ou dos Gravatás, entre as macambiras do agreste de Seu Nezinho Anacleto.
Hoje me acendo em flamejantes lembranças comigo mesmo. De brincadeira.
Ainda miro e estilhaço ou quebro potes de fantasia. Meu brinquedo é fazer correr o rio. Mergulhar nas água verde-musgo do açude do Calango. Gosto de escutar o tempo, consciente de que derramo histórias dentro de mim, eu, João Maria Ludugero que, não sendo dono do mundo, é muito filho do dono: DEUS, o Supremo Arquiteto do Universo!
E prevaleço a sorrir!
Contente. Pacífico. Lento. Disposto pelo chão-de-dentro da Várzea de Seu Geraldo 'Bita Mulato' Anacleto de Souza.
Olhando bem, o rio Joca para e a Várzea é que me leva.
Atrás de mim, passarinhos, canários-de-chão, patativas, galos-de-campina, pintassilgos, besouros entre garatujas de uns rabiscos meus,
esvoaçam, cantam e assopram fazendo disparar o vento em redemoinhos... o vento da saudade da terra que amo e de sua querida gente que tem habite-se em meu coração agreste: Várzea de dona Otacília Marreiros, de dona Zidora Paulino, de dona Helina de Pinga-Fogo, de dona Maria de Franco, de dona Alba Albanita Guimarães de Seu Arnor, ali da Travessa Brasiliano Coelho de Oliveira, sem esquecer da estimada senhora dona Penha de Seu Olival, ele que foi embora morar com Deus, mas nunca se retira do relicário de lembranças da nossa Várzea das Acácias!