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terça-feira, 9 de junho de 2015

PRESERVARZEAÇÃO II, por João Maria Ludugero

 
 
 
 
 
 
 
 
PRESERVARZEAÇÃO II
por João Maria Ludugero

Houve um tempo em que minha vida se abria
desde cedo a caminho da vargem que levava ao açude do Calango.

Sobre a vargem um magote de meninos levados da breca
corria contente espairecendo as horas agrestes.
Perto da açude havia um jardim natural de juncos, marmeleiros e beldroegas.
Até na época da estiagem, a gente curtia a terra de Ângelo Bezerra,
e o jardim parecia sobreviver ao calor e às intempéries da estação.

E em todas as manhãs a gente ganhava as trilhas da seara dos papa-jerimuns,
e, em singelas estripulias, íamos acordando os sonhos a colher cajás-mangas lá no Maracujá de dona Melisinha, entre seriguelas, tamarindos, jatobás, cajus, jacas, cocos-verdes, canas-caianas e pitangas, sem esquecer da deliciosa coalhada num alguidar com mel de abelhas europeias, bem como uma tremenda fartura de tapiocas, beijus e cuscuz de milho zarolho em leite de coco, regados com chás de erva-cidreira e capim-santo.

Dia-após-dia, de regra, era essa a rotina: era uma espécie de diversão natural, banhos de rio, bicas pelo riachão do verdejante coqueiral à beira do rio Joca.
E a gente olhava para as plantas, espiava os passarinhos, para as gotas de água que caíam dos galhos dos ingazeiros, onde a gente colhia canapus, melões-de-São-caetano, sementes de urtigas, e o coração da gente batia e ficava completamente feliz.
Muitas vezes abríamos a cortina do dia, além das quatro bocas rumo aos Ariscos e ao Itapacurá do carrego de cajus, pitombas lá do sítio de dona Julieta Alves, sem esquecer da seara do Tio João Pequeno, onde admirávamos a lida da casa-de-farinha, onde a dona Zefinha preparava tantos sequilhos, raivas e carrapichos que a gente degustava sob o alpendre ao encosto do jasmineiro em flor, sob bons ares e manipueiras.
E a gente vivia no meio de tanta simplicidade, ao encontro de tanta beleza.
Avistávamos os borregos a pastar, as cabras na ordenha.
Bem-te-vizinhos que esvoaçavam pelas cercas verdes.
Canários-de-chão que entoavam cantigas e galos-de-campina, dispostos pela seara de Seu Tida.
Sabiás, anuns, sebitos, curiós e patativas a elaborar suas ninhadas no paul de batatas-doces.
Tantas e quantas borboletas multicoloridas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar do Vapor.
Casulos de marimbondos que a gente contemplava de longe.
Muitas vezes, solene nos encantava o pintassilgo em canção.
Por vezes, o eufórico tetéu atacava em defesa das crias.
Das Formas aos Umbus, dos Seixos à Lagoa Comprida,
Do sítio de Zé Canindé aos Gravatás das farinhas de mandioca, das macaxeiras,
do feijão-verde, das favas, jerimuns, quiabos e macaxeiras,
das castanhas de caju e do milho assado na fogueira junina;
dos Ariscos de Virgílio Pedro à vertente Nova Esperança de dona Tonha de Pepedo.
Tudo estava certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino, até mesmo a tão honesta e animada quadrilha
de Seu Geraldo 'Bita' Anacleto de Souza, o farmacêutico e feliz varzeano a curar as dores da lida,
Senhor do banco de conversa a dar vazão em quebrar o pote da fantasia
Sem medo de gritar ao mundo que a vida precisa ter alegria, sem baixar a cabeça aos desaforos da vida.
E eu me sentia completamente contente, apesar do coração partido, apesar de agora fazer transbordar
meus olhos d'água marejados de tantas e quantas saudades do banco de Nina, das soldas de dona Carmozina, das rezas e benzeduras de dona Elina de Pinga-Fogo, dos brotes, roscas e regalias lá da padaria de Seu Plácido 'Nenê Tomaz' de Lima, das curas de quebrantos, ziquiziras, espinhelas caídas feitas por dona Ana Moita.
Mas, quando falo dessas singelas e pequenas alegrias certas,
que estavam diante da Várzea de madrinha Joaninha Mulato,
E como se abrisse uma janela, escancarando cancelas, soltando os bichos encostados,
quando alguém ainda me diz que essas coisas não existem, que eu as invento num engenho
de letras e palavras, com afinco, versejando diante da minha afoita janela de cabra-da-peste,
e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar com clareza, para poder vê-las assim,
dessa maneira tão Ludugerável, sem medo da cuca esbaforida, mas, se preciso for, de assanhar até mesmo os pelos da venta, junto à Várzea do sanhaço só entretido a degustar o formoso mamão maduro na singela e tão esplêndida Várzea dos Caicos.



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